Especialistas divergem sobre medidas anunciadas recentemente para incentivar finanças sustentáveis
Folha de São Paulo – 30.out.2021 às 23h15 – Thiago Bethônico
BELO HORIZONTE
A agenda do Banco Central para estimular o compromisso das instituições financeiras com os princípios ESG (ambiental, social e governança, na sigla em inglês) está longe de ser uma unanimidade entre especialistas.
Para uns, a série de medidas divulgada no mês passado coloca o Brasil na vanguarda das finanças sustentáveis, enquanto outros veem as mudanças como inócuas.
A agenda do Banco Central para estimular o compromisso das instituições financeiras com a sustentabilidade é vista como positiva por uns e inócua por outros – Sergio Lima/Folhapress
O pacote anunciado pelo BC no dia 15 de setembro engloba três conjuntos de regras. O primeiro diz respeito ao gerenciamento de riscos feito pelos bancos, que precisarão incluir as mudanças climáticas no cálculo até julho de 2022.
As instituições financeiras já precisavam considerar aspectos socioambientais, mas agora a dimensão climática entra como um fator específico a ser monitorado.
Além disso, o Banco Central definiu os parâmetros para a divulgação de relatórios com essas informações e adiantou a criação de um Bureau de Crédito Rural Sustentável.
Para os bancos, a principal novidade está nas novas regras de risco. Agora, eles serão obrigados a incorporar nas análises de concessão de crédito potenciais perdas em função de secas, inundações, enchentes, tempestades, ciclones, geadas e incêndios florestais.
“É um avanço. Desde o ano passado o Bacen reiterou a importância do tema, quando lançou a própria dimensão de sustentabilidade da Agenda BC#”, afirma Amaury Oliva, diretor de sustentabilidade, cidadania financeira, relações com o consumidor e autorregulação da Febraban.
Segundo ele, o gerenciamento de risco com componentes climáticos não é algo novo para as instituições, mas agora há uma definição mais detalhada pelo regulador.
“A gente ainda está discutindo com os bancos, lendo os textos — porque é algo recente e tem um conjunto grande de normas—, mas, numa avaliação preliminar, esse movimento é bastante positivo”, diz.
Oliva afirma que as medidas anunciadas pelo BC reiteram a importância do ESG para o setor bancário, que está preparado para seguir as novas regras.
“Agora a gente tem que trabalhar na implementação. Existem alguns componentes novos, comitês que serão necessários criar, procedimentos, relatórios. Tudo isso traz um desafio natural de uma regra nova”, afirma.
Além de tornar obrigatória a avaliação de riscos climáticos, o BC determinou que as instituições publiquem suas políticas de responsabilidade social, ambiental e climática, além de estabelecer critérios para o relatório.
Os bancos deverão seguir as recomendações do TCFD (força-tarefa para divulgações financeiras relacionadas ao clima, na sigla em inglês), que define parâmetros para quantificar os impactos das mudanças climáticas nos negócios.
Para Sergio Leitão, diretor executivo do Instituto Escolhas, o BC entrou tarde nessa discussão. Segundo ele, o debate sobre gerenciamento de riscos considerando a crise do clima e a biodiversidade já acontece na Europa há muito tempo.
O diretor também diz ter ficado decepcionado com o anúncio feito no dia 15 de setembro, visto que as resoluções não alteram o rumo dos investimentos no Brasil.
“O que o Banco Central fez para que o destino do dinheiro mude de lado, saindo das operações que acabam por financiar quem comete crimes graves, como trabalho infantil, trabalho escravo e desmatamento, e fazendo com que esse dinheiro vá para quem produz de forma sustentável, investe em produção limpa, não desmata e respeita direitos sociais? Nesse sentido, eu diria que nada foi feito, zero”, diz.
Na visão dele, outro ponto fundamental que ficou de fora do pacote anunciado pelo BC diz respeito à neutralização dos portfólios de investimentos dos bancos.
“A economia ainda está atrelada a uma série de atividades que são devastadoras, que geram gases de efeito estufa e que mantém o Brasil longe daquilo que a gente chama de uma economia de baixo carbono. O que você espera de quem quer induzir e estimular uma transição? Criar metas para tornar esse portfólio neutro”, afirma.
É diferente do que pensa Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de economia de baixo carbono do Instituto Clima e Sociedade. Segundo ele, não é papel do Banco Central mudar o rumo dos investimentos feitos no país.
“O BC tem o mandato de regulação de instituições financeiras, supervisão, fiscalização e de fazer política monetária. Não vai ser a regulação das instituições que vai gerar a descarbonização de toda a economia brasileira”, diz.
Para o coordenador, as novas regras definidas pelo Banco Central colocam o Brasil na vanguarda regulatória de riscos relacionados a clima para instituições financeiras.
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BUREAU VERDE
A terceira medida que integra o pacote sustentável anunciado pelo BC fala sobre a criação de um Bureau de Crédito Rural Sustentável, que vai reunir informações sobre beneficiários de financiamentos do setor agrícola.
Previsto para dezembro de 2022, o sistema vai impedir o crédito para propriedades localizadas em terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação, assim como empreendimentos ligados ao desmatamento ilegal e autuados por trabalho escravo.
Além da gestão de riscos socioambientais pelos bancos, o Bureau também vai ajudar na concessão de crédito mais barato para produtores que adotam boas práticas.
“O BC cria medidas e lista quais empreendimentos podem ser financiados ou não pelos bancos. Quando o regulador traz esses critérios objetivos, ele acaba orientando o mercado”, afirma Amaury Oliva, da Febraban.
Segundo ele, o Bureau é uma iniciativa importante e vai funcionar como uma espécie de cadastro positivo.
“Quanto mais informação a gente tem sobre os empreendimentos e suas características, mais temos segurança na oferta de crédito”, diz.
A novidade também foi bem recebida por representantes do setor. Para Marcello Brito, presidente da Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), as medidas anunciadas pelo BC são muito bem-vindas, a começar pelo gerenciamento de riscos.
“O que evento climático extremo significa? É possível ler por outro ângulo, chama-se prejuízo. Prejuízo privado, público, dano, morte e assim por diante. O fato de o modelo de análise climática constar nas regras do Banco Central, só mostra que o BC brasileiro está alinhado às mais modernas tendências de administração de investimento no mundo.”
Na visão dele, a definição de critérios sociais, ambientais e climáticos na concessão de crédito ao setor agrícola também é positiva.
“Eu não tenho dúvida que, daqui a 20 anos, todo o modelo de produção, seja agrícola, industrial, sofrerá tremendas transformações bioeconômicas e será completamente diferente do que a gente tem hoje. Isso porque nós temos tecnologia, nós temos inovação, e a ciência nos mostra caminhos a seguir”, afirma.
REGRAS SÃO FRACAS
No entanto, os parâmetros escolhidos pelo Banco Central para barrar o crédito rural foram considerados permissivos demais por alguns especialistas.
Segundo Sergio Leitão, do Instituto Escolhas, as restrições para casos de trabalho escravo, por exemplo, só valem se o produtor tiver sido condenado na última instância administrativa.
“Independentemente do número de multas que tiver, ele continua tendo acesso ao crédito. E decisão no Brasil em última instância pode significar anos rodando o processo”, afirma.
Outro ponto criticado pelo diretor é referente às terras indígenas. A restrição do BC só vale para propriedades localizadas em terras já homologadas, que são aquelas decretadas pelo presidente da República.
“Mais da metade das terras indígenas não estão homologadas. O cara que está ocupando uma dessas terras vai continuar recebendo crédito”, diz.
“Na prática o bureau verde é um bureau pintado de verde, porque ele não faz nenhuma diferença no mundo real”, acrescenta.
Gustavo Pinheiro, do Instituto Clima e Sociedade, concorda com a crítica. Para ele, o Banco Central poderia ter sido mais ousado na questão das terras indígenas, visto que a restrição já poderia valer para as localidades identificadas pela Funai.
“A identificação da terra indígena é um ato de fé pública, porque é exercida por um órgão público federal. O BC deveria entender isso como o início de um processo que é só questão de tempo”, afirma.